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A Linhagem da Escuridão: A Caixa (Prólogo)

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Primeiro ele ouviu os latidos insistentes de Brun, seu rottweiler. Ainda estava meio sonolento quando ouviu o grito do carteiro e levantou, zonzo, para atendê-lo no portão.

– Cala a boca, Brun! – disse enquanto abria a porta. O cachorro fez silêncio e sentou.
– Baita cachorro esse, mano! – falou o carteiro.
– Relaxa, ele é tranquilo.
– Deixa ele aí do lado de dentro mesmo, só por garantia. Essa caixa é para você. Assina o canhoto da nota, por favor.

Miguel assinou no automático e mal ouviu o “obrigado” do carteiro. Aquela era uma correspondência inesperada.

Deixou a caixa sobre a mesa enquanto ia ao banheiro, pensando se devia ou não desempacotar aquele problema. Sim, aquele era um problema dos grandes, de outra forma não teria vindo de seu pai, que não via a mais de vinte anos.

Parecia cansado no espelho. Parecia velho. Sinais de uma calvície vindoura, barba cheia de pelos brancos, olheiras. Tinha trinta e quatro anos, mas parecia estar aos quarenta.

– Que dia foda. E apenas começou.

Tomou um banho, escovou os dentes e sentou-se à mesa da cozinha. Mamãe poderia ter tido uma cozinha como essa, pensou enquanto olhava para os móveis e eletrodomésticos brancos. Era um cômodo pequeno, mas espaçoso e bem decorado. Herdara esse gosto dela.

“Mas a aparência e a maneira de pensar e agir do pai!”. Assim dizia a avó quando estava com raiva ou chateada com ele.

– Odeio quando o passado entra sem pedir – sussurrou, levando a mão até a caixa. Levantou sem tocá-la e resolveu fazer café.

Levou Brun para dar uma volta após o desjejum. Eram quase dez horas quando retornou, suado, cansado e com fome.

Após o banho, resolveu atacar a maldita caixa. Fosse o que fosse, não deixaria esse problema para depois.

Papelão simples. Seu pai nunca fora um homem preocupado com detalhes e impressões, não do que viesse dele. Dentro do embrulho, uma maleta de couro antiga, mas bem conservada. Sobre a maleta, uma carta.

Escrita à mão, letra caprichada e equilibrada. Nem parecia que havia sido escrita de dentro de um hospício.

“Miguel, se você está lendo isto é porque estou morto.
E sei que você não vai lamentar, pois somos muito parecidos. Eu já não fazia mais parte de sua vida, e sei que não era parte de suas preocupações, nem de suas orações. Sei também que você não precisa do meu perdão, mas talvez eu precise do seu.
Não sei que idade tem agora, pois não posso prever quanto tempo ainda vou conseguir ficar vivo antes que eles venham a mim… mas espero sinceramente que já seja maduro o suficiente para encarar o que escrevo não como delírios de um louco, mas como fatos vistos e vividos.
Talvez sua primeira reação seja duvidar do que vou dizer, mas tenho algumas provas que vão me ajudar a fazer com que acredites em mim. A primeira: pergunte a sua avó pelas cartas que lhe escrevi durante todos estes anos, Ela as têm, mas não lhe entregará se você não pedir. Acredito que ela não tenha me perdoado pelo que houve com sua mãe, mas paciência. Nem eu me perdoei ainda.
A segunda prova: dentro do segundo bolso da maleta há um envelope marrom.
Abra-o agora. Por favor.”

Miguel fez o que seu pai lhe pedia dominado por um senso incomum de curiosidade e urgência. Dentro do envelope havia três fotografias velhas: uma de sua mãe, usando um longo vestido branco e rendado, sentada no muro baixo de sua antiga casa no Jacarecanga, fumando. Como era linda.

A segunda foto trazia os três juntos, sorrindo e comendo pizza. Pareciam felizes. Nela, Miguel deveria estar com três ou quatro anos, pouco tempo antes do incidente que matou sua mãe. A similaridade com seu pai deixou-o assustado.

A terceira era uma foto mais recente, de Miguel com treze ou catorze anos usando o uniforme do Liceu do Ceará. Tinha os cabelos compridos e cara de mau. Começava a parecer com o pai. Sua infelicidade era palpável.

Não sabia o que o pai queria provar com essas fotografias, mas Miguel não se sentira tocado.

Voltou à carta.

“Sei que até agora não consegui te impressionar, mas a terceira prova vai aguçar sua curiosidade. Ela vai acontecer assim que você terminar de ler. Tenha paciência comigo.
Não tomei remédios durante uma semana para escrever o mais lúcido que conseguisse. Acho que estão desconfiando de mim, pois ouvi o doutor dizendo que toda a minha medicação deveria ser, a partir da noite de hoje, injetável.
Filho, eu tive culpa no que aconteceu com sua mãe, mas não do jeito que você pensa. Não como te disseram. Você vai entender melhor no futuro, quando começar a explorar o que deixei na pasta. Quando começar a ver que o que aconteceu – que acontece! – não é loucura. Acredite-me, eu preferia mil vezes estar louco.
Sinto muito por não estar presente quando você precisou, mas eu te amo. Sempre te amei. Espero que possa me perdoar algum dia, quando começar a ver e a compreender. Eu não quis que as coisas fossem assim, mas elas aconteceram e eu tive de reagir. Nunca fui de ficar esperando se pudesse evitar. Sei que sua mãe, esteja onde estiver, ama e protege você. Espero poder encontrá-la um dia e pedir perdão por tudo.
Com amor,
Miguel Antunes.
Fortaleza, 09 de Julho de 1986
P.S.: Atenda a porta. É a terceira prova.”

Nesse momento houve três batidas na porta da frente.

– Mas que porra…?

Com o coração aos pulos, Miguel caminhou até a entrada da casa. Abriu a porta e não havia ninguém. Teria sido sugestionado pela leitura da carta? Brun estava dormindo, o portão que dava para a rua encontrava-se fechado…

Fechou a porta e, quando se virou, percebeu que não estava sozinho. Havia alguém na casa com ele. Um cheiro diferente. Cigarro. Perfume cítrico.

– Flor de limão – disse uma voz feminina vinda da sala. – Venha, Miguel. Não vou lhe fazer mal.

Uma senhora de cabelos brancos e pele fina e enrugada estava sentada no sofá, fumando.

– Quem é você? Como entrou aqui?
– Se você leu a carta de seu pai, eu sou a terceira prova. E é claro que leu, pois de outra forma eu não estaria aqui. Mas tenho pouco tempo. Sente-se.
– Saia da minha casa!
– Controle-se, rapaz. Até sua mãe era mais corajosa que você.
– Não fale de minha mãe!

A senhora tragou o cigarro.

– Eu conheci seu pai e sua mãe melhor que você – disse. – Entendo sua dor e suas dúvidas, mas já está na hora de crescer e ver as coisas como homem. Sente-se para que eu possa fazer minha parte!

Mesmo sem querer, ele sentou. Havia uma força agindo sobre ele, forçando-o.

– O que você fez comigo?
– Nada – disse ela. – Agora podemos conversar. E você vai me ouvir, pois quando este cigarro se apagar será hora de eu ir.

Miguel ficou calado. Como aquela mulher entrara ali? O que ela queria?

– Seu pai não era louco, Miguel. Foi um dos homens mais valorosos que já conheci. Um homem duro, lutador, corajoso… seus únicos defeitos eram ser impetuoso e amar demais sua família. Ele era louco por sua mãe. E por você.
– Os médicos que o internaram e o restante da família parecem discordar de você, Dona…
– Você saberá meu nome em tempo, mas não agora. E essas pessoas não sabem de nada. Nem você.
– Quando meu pai morreu? Se é que você sabe, já que diz que o conhecia tão bem.
– Ele faleceu hoje pela manhã. Exatamente na hora em que a caixa chegava às suas mãos.
– Ah não. Isso é loucura.
– Faz parte das coisas que você ainda não sabe, filho. Mas vai saber.
– E se eu não quiser?
– É uma escolha sua. Mas se você é filho de seus pais, há uma curiosidade violenta crescendo.

Miguel manteve-se em silêncio. A velha olhou ao redor da sala e tragou o cigarro mais uma vez. Estava quase chegando à metade.

– Sem fotos?
– Não gosto de fotos. Trazem lembranças ruins.

Ela fez que sim.

– Você tem namorada?
– Isso não é importante para você.
– Responda – falou ela, e havia uma firmeza assustadora em sua voz.
– Não tenho namorada – disse irritado.
– E mantém-se afastado da família.
– Pode se dizer que sim.
– Por que?
– Não sinto necessidade deste tipo de ligações.
– Bem, é melhor assim – falou ela. – Não terminou bem para o seu pai, nem para os que vieram antes dele.
– Como assim?
– Há coisas em nosso mundo, rapaz. Coisas más. Criaturas da escuridão. Elas estão entre nós desde tempos imemoriais, caçando, matando, escondendo-se. Seu pai foi o último de uma linhagem de guerreiros que lutava contra eles.

Miguel olhou para a velha e começou a rir.

– Sério isso? Eu sou a última esperança da humanidade contra demônios, vampiros e tal? E o que eu sou? Trago em mim o sangue de Arthur Pendragon?

A velha não pareceu ofendida.

– Seu pai reagiu da mesma maneira quando soube. Parece que estou conversando com ele de novo. – disse ela, e Miguel pôde perceber lágrimas em seus olhos. – Mas isto é real. O mal existe. E você é filho de seu pai.
– Olha, acho que estou entendendo… você esteve internada com meu pai e, quando ele morreu, fugiu do hospício para me atazanar com a loucura de vocês. Aguarde um instante enquanto eu faço uma ligação…

Miguel levantou e caminhou até a cozinha para apanhar o telefone. Mas ela estava sentada à mesa, cigarro na boca, balançando a cabeça. Parecia decepcionada.

– Meu tempo está acabando, preciso deixar as coisas claras. Você é imaturo, fraco e covarde. Cheio de traumas e ressentimentos, afastou-se de todo mundo na tentativa de evitar sofrimento. Coloca-se diante da vida como uma vítima, e passa mais tempo se lamentando sozinho do que fazendo algo que tenha sentido. Mas você tem potencial, e carrega em si a possibilidade de se tornar alguém relevante na luta contra o Mal.
– Minha senhora, desculpe, mas…

Não chegou a terminar. Foi tudo muito rápido: ela estava sobre ele, olhos vermelhos, presas e garras. Aproximou a boca de seu ouvido e sussurrou:

– Nós somos reais, filho. Eu costumava estar do outro lado, sabe? Bebendo o sangue de vocês, rasgando suas gargantas, vestindo suas peles como roupas… mas seu avô me deu uma chance de redenção, e eu comecei a trabalhar junto com ele. E depois com seu pai. E agora venho aqui conversar com você, e o que encontro? Um bebê chorão cínico e condescendente.

Ela não exalava cheiro além do perfume e da fumaça do cigarro, mas esses odores estavam impregnados na roupa dela, não na pele. Seu hálito era inodoro, e sua pele era fria como gelo. Ela continuou:

– Vou te dar essa chance porque você é o último, e quando eu voltar você vai me dar a resposta. Se disser que não, nunca mais nos veremos, e você continuará vivendo essa vidinha insossa. Mas se disser que sim, iniciaremos seu treinamento e você será o depositário de nosso legado. Muita coisa depende de você, Miguel. Não deixe que a morte de seus pais tenha sido em vão.

Ela levantou e caminhou até a cadeira onde estava. Sua aparência era a mesma de antes, uma avozinha inofensiva. Ele ficou deitado no chão, o coração explodindo, a respiração descontrolada.

– O que é você? – sussurrou ele.
– Hoje sou uma amiga, para sua sorte.

Miguel sentou, mas em silêncio.

– Você vai examinar o conteúdo da pasta hoje, e eu voltarei assim que terminar. Eu saberei o horário, não se preocupe. É meu trabalho saber das coisas. Mas desta vez não vou entrar sem ser convidada, é preciso que você me peça. Consome muito do meu poder fazer as coisas desta maneira, sem a permissão do dono da casa.
– Você é uma vampira?
– Você já viu vampiros andando à luz do dia? – perguntou ela.
– Não sei. Não sei de mais nada.
– Se até a meia-noite você não abrir aquela pasta, eu não voltarei e ela sumirá. Tudo relacionado ao dia de hoje será lembrado de você de maneira confusa, e atribuído ao luto pela perda de seu pai. Uma alucinação moderada, pensará você. Mas se abri-la e explorar seu conteúdo, significa que você quer saber mais, e para saber mais precisará ser um de nós.
– E quem são vocês?
– Se quiser saber, você precisa abrir a porta e espiar dentro da escuridão, Miguel.

O cigarro dela acabou. Ela foi até a cesta de lixo e jogou a guimba.

– Você decide, Miguel – disse a velha, e desapareceu diante de seus olhos.
– Deus, estou ficando louco! – pensou ele. Ficou mais alguns minutos sentados, os pensamentos girando sem rumo. O que estava acontecendo. Precisava entender. Precisava saber. Precisava ver.

   Dentro da escuridão.

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