Contos
A Linhagem da Escuridão – Decisões (Capítulo 1)

Publicado há
10 anos atrásem
Por:
Michel EuclidesConfira o epílogo dessa história clicando aqui: A LINHAGEM DA ESCURIDÃO: A CAIXA (EPÍLOGO)
Capítulo 01: Decisões.
Fortaleza, Monte Castelo. Miguel caminhou até a sala. Ao sentar no sofá, viu a maleta sobre a mesa, junto às fotos. Viu seu pai em uma fotografia e assustou-se mais uma vez com a semelhança.
O que acontecera na noite em que sua mãe morrera? Quem fora realmente seu pai? E aquela senhora… o que era ela?
Quem eram “eles”?
Muitas perguntas. E curiosidade. E medo.
O relógio na parede marcava meio dia. Parte da sensação de estranheza deve ser fome, pensou.
Olhou para a maleta mais uma vez e foi até a cozinha esquentar o resto do jantar de ontem: baião de dois e bife com purê de batatas.
Comeu como um robô. Não conseguia parar de pensar que aquilo poderia ser um sonho. Ou uma alucinação.
– Talvez eu esteja começando a ficar como meu pai – sussurrou.
Após o almoço e um banho frio, foi até a sala esperando que tudo o que acontecera pela manhã tivesse sido apenas um sinal da loucura armazenada em seus genes, mas a maleta ainda estava lá.
Chega de enrolação, pensou.
Abriu a pasta e viu que no envelope marrom havia mais fotos: os três juntos, a mãe sozinha, depois ele crescendo através do tempo. Atrás de cada imagem, uma data e uma legenda. Em uma delas ele estava no fim da adolescência, tocando violão sozinho no jardim de casa. O pai anotara:
Dia 05/06/1997 – Miguel está com 16 anos. É alto e bonito como a mãe, mas posso ver os sinais. Ele tem os sinais. Não vai conseguir escapar. Preciso dar um jeito de protegê-lo até que esteja pronto…
Ou o pai era louco e ele estava ficando igual… ou aquilo era real. Tinha de ser.
Deixou as fotos de lado e retirou um caderno de capa preta de dentro da maleta. A capa, as pontas e a lombada estavam desgastadas. Escrito num adesivo branco colado na frente, a letra ordenada e clara de seu pai:
Miguel Antunes
Diário
Por favor, não mexa sem minha permissão.
Se você me permite, pai, vou vasculhar sua vida, pensou.
– É preciso cuidado ao lidar com o diário, filho – disse ela.
Surgira de repente ao seu lado no sofá, coberta por uma nuvem transparente de Flor de Limão.
Miguel tomou um susto mas procurou disfarçar.
– Pensei que você precisasse de um convite para entrar – disse ele.
– Na primeira vez – ela respondeu. Olhou para a pasta, as fotos e o diário. – Posso?
– À vontade – respondeu. – Mas você precisa da autorização de meu pai para mexer aí…
Seus olhos ficaram vermelhos. “Perigo!”, dizia seu corpo. Ele teve vontade de sair correndo, o coração descontrolado. Mas ficou.
– Não brinque com essas coisas, garoto – falou. – E além do mais, o único Miguel Antunes vivo aqui é você. Eu tenho sua permissão?
Miguel assentiu e ela voltou ao normal como se nunca tivesse passado por uma mudança. Parecia uma avozinha.
A senhora Flor de Limão pegou uma das fotos em que a família estava reunida, e Miguel pôde notar a umidade em seus olhos.
– Ela era linda – sussurrou a velha. Jogou a foto de lado e, enquanto agarrava o diário, começou a sussurrar: “Putrefação que consome lentamente, Tempo que corrói, Vida que termina. Possuo a permissão do sangue para abrir a porta do destino. Revele-se! ”.
Havia um vazio em sua mente e uma ausência em sua alma enquanto ela dizia aquelas palavras. Miguel sentia como se não estivesse mais ali e, por alguns instantes, esqueceu seu nome. Sombras corriam pela sala, negando a luz do dia. Estava frio. Estava distante…
– Fique comigo, Miguel – disse ela. – Eu disse que precisava de cuidado ao abrir o diário. Seu pai não era louco.
Despertou. O relógio da sala estava parado: três da tarde.
– O que está havendo? O que são aquelas palavras?
– Uma fórmula assíria de desocultação. Se dita pela pessoa errada ou fora de cadência, abre uma passagem direta para o Inferno.
Isso era loucura, pensou enquanto balançava a cabeça. A velhinha sorriu.
– Não é loucura. Nós estamos agora no Limbo, um simulacro de existência que é criado pela energia que seu pai depositou no diário. Podemos passar dias aqui, semanas até. E quando eu fechar o diário, não haverá se passado tempo.
– Isso é impossível!
– No mundo material regido pelas leis da física sim. Mas não estamos mais lá, Miguel. Você não queria olhar dentro da escuridão? – Ela abriu os braços e sorriu. – Bem-vindo.
Sentou ao lado dela. Suas mãos tremiam.
– Você entendeu as palavras que falei? – perguntou a senhora.
Ele fez que sim.
– Isso é importante. Você lembra de alguma coisa do seu pai?
– Ele cantava para eu dormir. Todas as noites.
– Como eram as músicas?
– Estranhas. Meio sussurradas, como se estivessem presas na garganta dele. E tinham um sabor estranho.
Miguel estava de olhos fechados agora. O tremor passara. Ela continuou:
– Sabor de que?
– De canela, pimenta, cravo. Areia. Maresia. De sândalo. De alho. De vento. De água.
– Essas canções eram antigas?
– Sim – disse ele, a voz monocórdia. – De antes do mundo como o conhecemos.
– Talvez seu pai fosse mesmo um pouco louco, mas suponho que não poderia ser de outro jeito. Acorde, Miguel, preciso de você aqui.
Ele retornou devagar. Lento. Como se sua alma estivesse procurando os encaixes corretos.
– O que meu pai fez comigo? – perguntou.
– Saturação – falou a velha. – Ele criou uma linha de acesso e encharcou seus genes com tudo o que ele sabia. Ousado, condenável… mas necessário, eu suponho. Agora entendo porque as coisas tomaram o rumo que tomaram.
– Minha mãe?
– Temo que sim, filho – disse ela, e havia carinho em sua voz e em seu olhar. – Entre outras coisas. E você vai ter que ser forte.
– Por que?
– Porque quando fecharmos o diário, eles saberão que você despertou. E virão atrás de você.
Ele levantou, as mãos esticadas diante do corpo.
– Peraí, quem são “eles”? Quem é você?
Ela sorriu.
– Sente e acalme-se. A história é difícil.
– Preciso de água – disse ele, e saiu em direção à cozinha. Quando voltou trazia um pouco para ela, o isqueiro e o cinzeiro, que depositou sobre a mesa.
– Ora, mas não é um jovem galante, esse rapaz? – Sorriu e bateu palmas. Acendeu o cigarro, bebeu um pouco da água e continuou.
– Há coisas e pessoas muito ruins no mundo, Miguel. Na maioria das vezes elas não trabalham juntas, mas há momentos na história da humanidade em que elas se unem para governar e destruir. Chamamos estes momentos de “Convergência”. Há trinta anos seu pai e o nosso grupo evitou aquela que pensamos ser a última. Foram custos muito altos, com poucos sobreviventes de nosso lado.
“Mas estávamos errados. Não a havíamos impedido, apenas adiado. Eles recuaram e estão voltando mais fortes”.
– Essas Convergências…
– A revolta dos Anjos. A Queda. O Dilúvio. As Pragas do Egito. O desaparecimento de Atlântida. A queda de Camelot. As Cruzadas. A Inquisição. A ascensão do fascismo e do nazismo e as Grandes Guerras. A guerra do Vietnã…
– Mitos misturados com história. Não me faça de bobo.
– Não, filho. Mitos não. Você não tem a sensação de que está tudo errado com o mundo? Que há coisas e pessoas agindo nas sombras para que tudo vá de mal a pior?
Miguel engoliu em seco. Era exatamente assim que se sentia a maior parte do tempo. E a loucura espreitava por trás de seus olhos.
– Não se preocupe com a loucura, filho. Seu pai era um dos homens mais lúcidos que já conheci.
– Eu ouço vozes e vejo coisas…
– Quanto a isso, temos de trabalhar. Você precisa de treinamento, e nós vamos providenciar isso.
– Quem são vocês?
Ela colocou a guimba do cigarro no cinzeiro, pôs-se de pé e sorriu.
– O enterro de seu pai é daqui a duas horas. Há um carro aí fora para nos levar. Vá trocar de roupa.
– Mas… e o limbo?
– Já saímos.
O diário estava fechado sobre a mesa. Os relógios funcionavam novamente. Mas havia algo estranho.
– Um zumbido…
– Eles sabem de você agora. Mas não se preocupe, enquanto eu estiver por perto nenhum deles vai se aproximar. Vamos, troque de roupa. Eu espero.
Miguel tomou um banho rápido e se vestiu. Calça, camisa e sapatos pretos. Colocou os óculos escuros e saiu.
Uma Mercedes preta estava estacionada diante de sua casa. Os vizinhos olhavam desconfiados, mas ele não se importou. A porta se abriu e ele viu a pequena senhora lá dentro. Entrou.
– Você fica bem de preto – disse ela.
– Obrigado – respondeu.
– Bom, acho que devo a você meu nome, não é?
– Pelo menos isso, acho – disse ele.
Ela sorriu. Usava um bonito vestido branco rendado, mas com um simples gesto mudou totalmente de aparência. Não era mais uma avozinha: era uma jovem mulher, alta, de cabelos escuros e olhos azuis. A pele branca emitia um brilho pálido. Tinha dentes perfeitos. O vestido agora era preto, ajustado ao corpo jovem e desejável. Ela estendeu a mão de dedos longos e finos e disse:
– Fui conhecida por muitos nomes, Miguel. Hoje, para você, sou Lilian.
O toque de sua mão era quente, mas pesado e lento. Havia muita história, e ele sabia que aquele não era seu nome real. Mas haveria de descobri-lo.
– Olá, Lilian.
Ela bateu no vidro que os separava do motorista e disse:
– Para o cemitério São João Batista, Pedro. Esse rapaz precisa se despedir do pai.
Pai de Nicholas e Maria Julia, aspirante a escritor, músico e fotógrafo, professor de filosofar. Gosta do pôr-do-sol, do cheiro da terra molhada e da chuva. Tem medo de morrer e de não ser lembrado. Consome beleza sem moderação. Adora cinema, é leitor voraz e precisa de música para viver. Pode ser extremamente cínico e sarcástico sem aviso, mas está sempre tentando ser um cara legal.