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A Divina Comédia | Quando Dante rolou um d20

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Os Nove Infernos de Baator não possuem esse nome à toa. Muito menos os Sete Paraísos Escalonados de Celéstia. Peguem suas armas, varinhas e símbolos sagrados, pois nos juntaremos ao fantasma de Virgílio e ao grande bardo Dante pela Grande Roda cosmológica de Dungeons & Dragons.

A Divina Comédia (Divina Commedia no original em florentino) é um dos poemas épicos mais longos e lidos de todo o mundo. De autoria do italiano Dante Alighieri escrito entre 1304 e 1321 (não há um registro preciso), é de uma influência na cultura e na visão de mundo desde a Renascença até os dias atuais. E em âmbito global.

Fazendo um pequeno resumo, a obra de Dante fala de sua jornada rumo ao céu e sua amada Beatrice (no Brasil também chamada de Beatriz), passando por três grande estágios (as três divisões do poema): Inferno, Purgatório e Paraíso. É chamada de Comédia por, na época, haver apenas dois tipos de poemas épicos: as comédias e as tragédias. As tragédias eram escritas em latim, voltadas para serem lidas nos círculos mais eruditos da sociedade. As comédias eram escritas em vernáculo, a língua do povo. E Dante optou pela linguagem do povo em sua obra-prima. E não tardou a se fixar na mente da população.

Quando vimos de intensa claridade

Sob a rama tornar-se o ar brilhante

E o som tomou de um hino a suavidade.

Purgatório, Canto XXIX

A Divina Comédia, particularmente Inferno, é responsável pela nossa visão atual desses três “planos” a nível religioso. As crenças nas profundezas da danação, nas provações para purificação da alma e na glória celeste são, em essência, evoluções do pensamento dantesco. O próprio adjetivo “dantesco” traz uma conotação de “horror glorioso”, tão detalhadas eram as descrições de sua jornada.

E essa influência chegou ao RPG. Em Dungeons & Dragons, os diabos (personificações da ordem e do mal) vivem em seu próprio plano, chamado de Nove Infernos. Em Inferno, existem nove níveis, nove círculos, no reino de Satã. Na Grande Roda, os Nove Infernos são um plano oposto ao Abismo no eixo ordem-caos. E, o inferno dantesco é um grande abismo dividido em círculos e camadas.

No Manual dos Planos, em Dungeons & Dragons 3.5, vemos as mais diversas influências da cultura mundial em cada reino planar. Com Dante não foi diferente: os Nove Infernos de Baator e os Sete Paraísos Escalonados de Celéstia são uma clara referência à Divina Comédia. De acordo com o livro, os Nove Infernos são o lugar “onde a compaixão fenece e as más intenções abundam”. Conta com uma clara hierarquia, da mesma forma que os cantos de Inferno e um líder absoluto que espera os aventureiros (no caso o próprio Dante) na última camada: o Satã de Dante toma a forma de Asmodeus, o líder dos Nove Infernos. Já os Sete Paraísos Escalonados se encontram em total oposição: “é a terra do esplendor”, onde os habitantes vão ascendendo em suas virtudes até a Cidade Celestial e o Paraíso Luminoso. Dante encontra ali sua Beatrice. Os aventureiros encontram ali… Bem, depende do mestre!

“Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!”

Estas palavras, em letreiro escuro,

Eu vi, por cima de uma porta escrito.

Inferno, Canto III

As camadas descendentes em que um viajante deve percorrer e assim visualizar os Nove Infernos, encaixando-as como um quebra-cabeças é quase uma reprodução para as nossas mesas da viagem de Dante acompanhada por Virgílio. Os suplicantes, ou sombras de almas, se assemelham aos desafortunados descritos por Dante. Algumas das camadas dos Nove Infernos lembram, e muito, os círculos do poema.

La Commedia illumina Firenze (A Comédia ilumina Florença), de Domenico di Michelino, mostra Dante com o Monte Purgatório atrás de si.

Dis, por exemplo, é a segunda camada de Baator, mas a Cidade de Dite (ou de Dis) se encontra entre o quinto e o sexto círculos da Divina Comédia. Suas descrições são muito similares: Dante descreve a cidade como cercada pelo fogo, fossos profundos e muralhas de ferro e, sob as portas, mil anjos caídos. O Manual dos Planos coloca a camada como uma ardente cidade de ferro.

A terceira camada de Baator, Minauros, se assemelha ao Lago de Lama, o terceiro círculo de Dante: o lugar feito de lama e excrementos onde padecem as almas dos gulosos se transforma num plano em forma de pântano fétido de lodo e poluição, com áreas geladas representando as chuvas frias sobre os gulosos pecadores.

Flegetos é a quarta camada e é muito similar ao primeiro vale do sétimo círculo, o Vale do Flagelonte. Dante descreve como um rio de sangue fervente onde padecem aqueles que atentaram violentamente contra o próximo. Em Flegestos, os rios de fogo correm por todo o plano.

A camada de Estígia, a quinta camada, é muito semelhante ao Rio Estige, o quinto círculo do inferno (e um dos rios do Hades da mitologia grega) onde padecem os tomados pela ira. As águas escuras como sangue aparecem em ambas as descrições.

Malebólgia, a sexta camada de Baator é claramente Malebolge, o oitavo círculo do inferno. O Manual dos Planos a descreve como uma infinita encosta rochosa com fortalezas de cobre onde os diabos se abrigam enquanto, nos cantos de Inferno, o círculo é descrito todo em pedra e da cor do ferro, assim como a muralha que o cerca. Além disso, Dante colocou em Malebolge os fraudulentos e, ironicamente ou não, está em Malebólgia a Escola de Política dos Nove Infernos. Coincidência ou crítica?

A oitava camada é chamada de Cânia, um reino gelado muito similar ao nono círculo da Comédia. “O frio de Cânia é tão penetrante que parece estar vivo”. O nono círculo de Dante é dividido quatro esferas, todas congeladas, sendo a primeira: Cânia. O governante Asmodeus de D&D, segundo a lenda, está em uma fenda, talvez ferido de uma grande batalha. O Satã de Dante se encontra enterrado no gelo até a altura do peito. Ambos possuem grandes formas monstruosas.

Os Nove Infernos de Baator

Mas deixando os Nove Infernos de lado, vamos pegar um portal e surgir em Celéstia. Dante descreve os sete céus móveis em Paraíso, cada um correspondendo a um astro conhecido da Idade Média, que dividia os céus em esferas. Aqui, Dante deixou para trás Virgílio e agora é acompanhado de sua amada Beatriz. Atingiu os níveis épicos depois de passar pelo inferno e pelo purgatório? Quem sabe dizer?

Os tesouros, porém, do reino santo,

Que arrecadar-me pôde o entendimento,

Serão matéria agora de meu canto.

Paraíso, Canto I

As camadas de Celéstia seguem as mesmas ordens das primeiras sete esferas do Paraíso de Dante: Lúnia, Mercúria, Vênia, Solânia, Mertion, Jovar e Crônias são as esferas da Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno do Paraíso.

Os Sete Paraísos Escalonados de Celéstia

Algo interessante a se notar é que a sétima esfera celeste de Dante parece ter sido suprimida e as duas seguintes unificadas em uma única esfera no Monte Celéstia. Além disso, a forma de montanha deste plano tem grande similaridade com o Monte Purgatório da Divina Comédia, com sua estrutura dividida em terraços, ascendendo pouco a pouco.

Lúnia é descrita como o Mar de Prata, um oceano prateado que leva à base da montanha de Celéstia. No Canto II do Paraíso, Dante e Beatrice navegam pelos céus até atingirem as glórias da Lua. Além disso, sendo a base do Monte Celéstia, Lúnia também remete ao oceano que Dante e Virgílio atravessam para chegar à base do Monte Purgatório.

A esfera de Mercúrio é repleta da luz dourada de Deus no Paraíso. Mercúria nos traz o Paraíso de Ouro, onde se estão as glórias terrenas de incontáveis heróis. Na segunda esfera de Dante se fala das glórias terrenas das almas que ali residem e todos os heróis se lembram de seus feitos em Mercúria no Dia da Recordação ano após ano.

Vênia é a terceira camada de Celéstia e a terceira esfera celeste de Dante. No entanto, muito pouco se parecem uma com a outra. No Manual dos Planos, parece haver uma maior identificação com a deusa Vênus (forma romana de Afrodite, deusa grega do amor) que com a obra dantesca.

Solânia, a quarta camada de Celéstia, é coberta por um céu que cintila como prata polida. Ao chegar à quarta esfera, Dante e Beatrice são envolvidos por um círculo de doze luzes cintilantes. Além disso, Solânia abriga monastérios, catedrais e outros tipos de locais sagrados, enquanto a quarta esfera do paraíso, segundo Dante, abriga os grandes sábios religiosos. A maior parte do conhecimento medieval da Igreja vinha justamente dos monastérios, abadias e catedrais, famosos por suas grande bibliotecas e monges copistas.

Reservada aos guerreiros da fé, a esfera de Marte tem muito em comum com a camada de Mertion. Dante encontra aqui almas de pessoas que combateram nas cruzadas em prol da Igreja, tantos que as estrelas e constelações eram, aos milhares, as almas dos que deram sua vida por Deus. Em Mertion, as cidadelas são campos de manobras para paladinos, celestiais e outros campeões do bem e da ordem.

Jovar e Crônia, inicialmente, parecem não ter nenhuma relação com a sexta e sétima esferas de Dante, Júpiter e Saturno. No entanto, Jove era um dos nomes romanos para Júpiter e Cronos era a contraparte grega de Saturno. Além disso, não há como se descrever os aspectos de Crônia, mas que sua bondade se une à própria Celeste. Dante ascende nas últimas três esferas para a glória eterna em companhia de Beatrice, contemplando todo o esplendor da Santíssima Trindade.

Nos resta saber, aventureiro: está preparado para enfrentar Baator e ascender a Celéstia?

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